Satsanga realizado com Swami Dayananda Saraswati na cidade de Los
Angeles, CA, em setembro de 1984.
Pergunta:
Nas aulas de Vedanta, o Ser é definido como sat, chit e ánanda.
Acho que estou começando a entender "sat", existência,
e "chit", consciência, mas "ánanda",
felicidade, ainda me parece difícil. Se sou realmente consciência
não-dual sem uma identidade própria, uma consciência
individual, como poderei saber que sou felicidade? Quando a individualidade
se vai, parece que o "eu-que-conhece" também some
e só resta essa morna consciência/existência.
Não sei se quero ser assim. Como pode isso ser felicidade?
Resposta: O problema
aqui está na tradução de sat, chit e ánanda
para respectivamente existência, conhecimento e felicidade
ou êxtase. Se é essa a tradução, tudo
pode ficar bem confuso. Tomemos, por exemplo, a palavra "sat".
Ela não tem um significado real se não está
acompanhada da palavra "ánanda". Sat, chit, ánanda
equivale a satyam, jñánam, anantam brahman. Significam
a mesma coisa. A palavra "ananta" é muito clara.
Ananta quer dizer o que não tem anta,
nenhum fim, isto é, como objeto, não tem qualquer
atributo que situe ou o distinga de outro objeto. Suponhamos um
objeto que tenha atributos. Esses atributos distinguem este objeto
dos dernais. Urna cadeira tem o atributo de "ser cadeira"
(ter "cadeiridade", chairness, em inglês), que
a limita.
Digo "cadeira" e qualquer
um sabe que não estou me referindo a uma mesa, ou parede
ou seja lá o que for. Nada além de cadeira. Se a
palavra ananta é usada para satyam (existência -
aquilo que é) então, nesse sentido, "é"
(existência) não tem qualquer lirnite porque não
tem quaisquer atributos que o limitem. Isso quer dizer que não
há limitação objetiva para satyam, aí
incluídos limites de tempo e espaço. Assim, só
aquilo que não possui limite de tempo, de espaço
e de objetificação pode ser satyam. Somente essa
espécie de satyam pode ser Brahman.
Portanto, a mera tradução
de satyam para existência não funciona. Existência
quer dizer existência de algo. Geralmente, entendemos que
qualquer coisa que exista carrega em si o elemento tempo. "Existência"
supõe sempre o elemento tempo. Dizer que uma coisa existe
significa ordinariamente que ela antes não estava aqui,
agora existe e mais tarde poderá não existir. E,
mesmo enquanto existe, pode não ser a mesma no próximo
minuto. Portanto, todos os nossos conceitos de existência
baseiam-se em termos de tempo, qualidade e lugar. Se dizemos simplesmente
que satyam significa existência, estamos tomando satyam
como palavra comum, do mesmo calibre da palavra existência
que podemos usar para o que quer que seja. Temos a existência
da luz, das mesas, dos micróbios, etc. "Existência"
refere-se sempre a algo mais que a qualifica. Ou esse algo mais
está qualificado pela existência. Um objeto é
qualificado pela existência - ele É. A cadeira é
- "cadeira" tomado como substantivo, "é"
como qualidade. A cadeira tem a qualidade de existir; é
assim que encaramos toda essa estória. Mas, quando se trata
de satyam, falamos de existência sem qualquer forma de limitação.
Só assim podemos manter a
palavra existência para definir satyam. Satyam é
"é" (existência). Uma vez que satyam é
traduzido como existência, devemos acrescentar a palavra
anantam. Que tipo de existência é representado por
satyam? Existência sem limites. Quer dizer que não
há nada além de satyam, existência sem limites.
Não houve nascimento em certo instante, nem há uma
forma particular que mude com o tempo, portanto estando livre
deste, livre da objetificação e dos atributos. Satyam
quer dizer pura existência. Não é a existência
de Brahman. Brahman é existência. Não como
a existência de uma cadeira. Brahman é satyam. Existência,
satyam, em si mesma, é Brahman, e qualquer coisa a mais
é nome, forma. Todos os nomes e formas estão contidos
em Brahman, que é existência. Por isso, a palavra
anantam é muito importante na compreensão de satyam.
Da mesma forma, a palavra "jñánam"
é também necessária para definir satyam.
0 "objeto do conhecirnento", o "sujeito do conhecimento"
e os "meios do conhecimento" são todos chamados
jñánam. Conhecer também se diz jñánam.
Então, de que espécie de jñánam estamos
falando agora? Deve ser satyam jñánam. Satyam significa
aquilo que é invariável em todas as formas de existência,
porque não há nada que esteja fora dele. Portanto,
deve ser anantam jñánam, satyam jñánam.
Satyam mesmo existe na forma de jñánam. Que espécie
de jñánam? Jñánam que é satyam
e anantam. Não é o conhecedor, o conhecido ou (o
processo de) conhecer, mas aquilo que é satyam em todos
três. 0 que é esse satyam? É puramente consciência.
Não é o conhecedor. O conhecedor depende da consciência;
consciência não é o conhecedor. Não
é o conhecimento. O conhecimento depende da consciência;
consciência não é conhecimento. Não
é o objeto do seu pensamento. O objeto do seu pensamento
está na consciência, mas consciência não
é o objeto do seu pensamento. O conhecer e os meios do
conhecimento envolvem a consciência invariável, mas
a consciência em si não é nenhum deles. A
palavra ananta (ilimitado) é necessária para compreender
satyam, jñánam ou sat, chit.
Se se traduz sat, chit, ánanda
como existência, conhecimento, êxtase, chega-se à
existência no sentido do ilimitado, do eterno, e então
você conclui: "Oh, o Ser (átman) é eterno.
Mas, Swamji, como posso compreender essa eterna consciência
que ao mesmo tempo é êxtase? Entendo que átman
é eterna consciência, mas como experimentá-lo
corno êxtase?". Quem faz essa pergunta está
usando êxtase com o sentido de algo que se experimenta.
Palavras usadas dessa forma causam problemas de comunicação.
Palavras desse tipo são usadas como lakshana na comunicação.
A palavra lakshana significa indicação, sinal característico,
símbolo ou ilustração. A palavra ánanda
em sat, chit, ánanda é usada como [o]lakshana que
aponta um fato, uma verdade. Satyam é uma lakshana para
satyam que é ilimitado. Jñánam é uma
lakshana para jñánam que é plenitude, infinitude.
Quando dizemos sat, chit, ánanda, o ánanda swarupa,
a natureza de ánanda está na forrna de felicidade.
A tradução não é exatamente felicidade,
porque felicidade é uma palavra que supõe uma experiência,
que indica uma experiência da mente, um vritti (pensamento)
na mente. A mente assume um shanti vritti (um pensamento feliz,
de completa paz) e a felicidade se manifesta.
Essa felicidade poderá pertencer
ao mundo? Ela não vem deste mundo. Se vem do mundo, qual
será o objeto que me faz feliz? Não existe um objeto
no mundo que possa fazer-me feliz. Nenhuma situação
pode ser tomada como felicidade, porque ela mesma pode fazer alguém
infeliz mais tarde. As pessoas ficam felizes ou infelizes em diferentes
situações. Portanto, nenhuma situação,
objeto, momento ou local particular pode ser considerado uma fonte
de felicidade. Então você tem de perguntar-se se
a felicidade não estará dentro de você. Mas,
se dizemos 'dentro de você', que significa isso? A mente?
Se a mente fosse a fonte da felicidade, não poderia haver
tristeza. Mas a mente também está presente na tristeza.
Portanto, não se pode dizer que uma mente pensativa é
a fonte da felicidade. Nem dizer que fico feliz quando o mundo
está ausente. Isso não é verdade. Pode-se
apreciar o mundo e ser feliz. Você pode escutar música
e ser feliz. Você pode tomar sorvete e sentir-se feliz.
Ou ficar feliz dançando. Ou sentir-se feliz por gostar
de alguém. A experiência sensorial do mundo pode
trazer felicidade. Portanto, não se pode dizer que o mundo
nos faz infelizes. Não é verdade, porque se pode
contradizer essa opinião.
Portanto, não se pode dizer
que o mundo nos faz infelizes, porque ele também nos faz
felizes. Felicidade não tem nada a ver com o mundo ou com
a mente. Não se pode dizer que a mente está ausente
quando estamos felizes, porque a mente está desperta nesse
mornento. Os sentidos não estão ausentes, o corpo
não está ausente, nem o mundo, nem a mente, e no
entanto a felicidade aí está. Afinal, quando a felicidade
está presente, o que mais está? Eu diria que existe
apenas você, menos as suas noções. 0 que quer
dizer isso? Sou urn buscador, estou identificado corn o ahankara
(noção do "eu"), com a estória
de identificar-me com um ser mortal, limitado, cheio de desejos.
Essa noção particular de ser um ente mortal e limitado
é momentaneamente superada, porque alguma coisa muito absorvente
me captou e por isso esqueci de mim mesmo e sou feliz. O que quer
dizer 'esquecer-me de rnim'? Não é que o "eu"
tenha desaparecido. O que foi esquecido foi a sua história,
seus problernas. Foram todos esquecidos e você está
feliz. Isso significa que a felicidade se torna um estado. Nesse
estado, o que está presente é a plenitude, a infinitude.
Esse é o "eu" que se manifesta. Na realidade,
não há mais uma divisão entre buscador/busca
quando se está feliz. O mundo não é mais
objeto dessa busca, e você não é mais o buscador.
Você não deseja mais que sua mente ou seu corpo sejam
diferentes. Nesse momento, tudo existe e é plenitude. Você
é plenitude. O mundo também é plenitude.
A mesma plenitude está lá. Felicidade torna-se um
lakshana da infinitude que é a sua natureza. Só
então podemos usar as palavras sat, chit, ánanda
como lakshana para átman.
O que acontece é que as pessoas
não compreendern isso e dizem: "Swamji, eu compreendo
átman, que é sat, chit, ánanda, mas como
posso experimentar ánanda/êxtase? A pessoa que pergunta
isso conhece diferentes tipos de êxtase e quer agora um
novo tipo, inconfundível. Tem de ser diferente do êxtase
do chocolate ou do disco, e de qualquer outro êxtase já
conhecido. Ela quer esse novo êxtase, que é o êxtase
de átman. Outros tipos já foram vistos desde a infância
- o êxtase do balão de borracha - até os atuais
êxtases do Caribe ou do Havaí. E tendo tudo experimentado,
encontra-se pronto para o êxtase de átman. Tais pessoas
sentem que, ao experimentar esse êxtase, atingirão
a iluminação. Será isso verdade? Suponhamos
que alguém tem uma experiência de êxtase, para
a qual utilizou determinadas técnicas aprendidas. Você
comprime tal parte, olha assim ou assado, etc, e afinal experimenta
algum êxtase. Como saber se esse êxtase é o
êxtase de átman?
Ao definir ánanda corno felicidade/êxtase,
damos a uma palavra com um significado simbólico uma conotação
de experiência. Ánanda passa a ser algo que deve
ser experirnentado. Muito naturalmente, todos começam a
aguardar um êxtase experimentável.
Suponhamos que você experimente
determinado êxtase; este não lhe dirá "Eu
sou o êxtase de átman", não haverá
declarações desse tipo. Então, como saber?
De novo você busca uma experiência extática,
e de novo tem de interpretar esse êxtase. Será o
êxtase de átman? E, assim, naturalmente a pergunta
passa a ser: "qual o meio de conhecimento para interpretar
o êxtase? A percepção como meio de conhecimento
não poderá auxiliá-lo. Você só
poderá dizer que por um momento "me pareceu estar
em êxtase e agora não estou mais". Dizer "eu
estava em êxtase" é inteiramente diferente de
dizer "eu sou êxtase". Na verdade, você
é êxtase e somente êxtase. Qualquer experiência
de êxtase que se tenha não é mais que a manifestação
da infinitude que é você. Ánanda, felicidade,
é pois uma palavra que usamos geralmente como lakshana
para infinitude.
Swami Dayananda Saraswati
Texto extraído do site
yoga.pro.br
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